Procurando corresponder ao amável desafio do meu velho e muito estimado Amigo e companheiro seareiro de letras Jerónimo Nogueira, já me encontro, nessa medida, a escrever algo para esta distinta Revista que agora mui dignamente dirige. Eu, como pessoa cega que também gosta de escrever, comecei, inadvertidamente, a garatujar umas ideias e a caminhar numa universalidade de olhares que mais se afigura ínvia do que clarividente... Mas eu tinha de iniciar um arrazoado qualquer, conducente a um sabe-se lá que tema para este assumido compromisso, ainda que submerso numa espécie de amena cavaqueira de café. E achei que o título escolhido "dá pano para mangas". Aliás, a minha prolixidade não costuma trair-me e a sua sistematização graficofonética sempre me empurra para uma semântica desejável das coisas e dos objetivos, mesmo que, à primeira vista, de somenos importância. E devo dizer que, por vezes me perturba a ausência de tempo no tempo para escrever. Há ideias únicas que só nos ocorrem uma vez na vida, mas que se perdem nos paraísos do pensamento por falta de tempo para as acolher, tratar e registar em acondicionado lugar. Servindo-nos de um neologismo miacoutiano, temos de "abensonhar" a vida, seja na sublimidade do que nos proporciona seja nas adversidades com que nos molesta. A vida é um itinerário singularmente surpreendente e fascinante, como legado divino inviolável e fecundo que nos foi entregue para gerirmos, suportarmos e vencermos, em cada momento, todo o tipo de intempéries, com tristezas ou alegrias, vociferando ou sorrindo-lhes. Só temos de agradecer e de reconhecer muito o estarmos vivos e o pugnarmos incessantemente por uma vida digna e inclusiva, onde todos tenhamos lugar e sem as obstruções invisíveis que, em geral, insistimos em esconder e que não hesitamos em exibir numa qualquer circunstância mais oportunística que nos possa fragilizar e persuadir momentaneamente... Mas podemos negociar e exercitar dentro de nós mesmos resistências e competências pessoais e sociais que dão à emoção e à inteligência, à humildade e à tolerância, à coragem e à generosidade na solidariedade e na partilha, à sensibilidade e à cultura, à harmonia e à esperança, mais poder e mais força para sermos íntegros e indómitos nas nossas convicções e decisões.

Creio que ninguém consegue, deliberadamente, dar o seu significativo contributo para humanizar a vida se não tiver prazer solidário no existir, condignamente educomunicando em partilha. O prazer de existir está na naturalidade do viver e conviver, do amar e do saber fazer amar. Embora, secundando Oscar Wilde, viver seja a coisa mais rara do mundo, porque "a maior parte das pessoas" se limita "a existir", a persistência, com empenho e sabedoria, na humanização da vida nunca pode adormecer nem adoecer. Até porque a sabedoria é a parte suprema da felicidade (Sócrates). Mas só podemos ter prazer no existir desde que sejamos solidários e felizes... o que, nessa exata dimensão, e parafraseando Umberto Eco, só pareça ser "para cretinos" a felicidade completa. Não obstante esta afirmação, costumamos sustentar que não podemos deixar desmaiar o sorriso da alma e do rosto, do coração e da própria pele... da lógica e da razão, da emoção e do sentimento... onde adormece, sonha e acorda o nosso bem-estar, estando sempre cientes e interventivos na justificação crítica dos nossos discursos e das nossas ações, palavras e ações de mãos dadas e a falarem a mesma língua.

Quando temos alguma dificuldade ou disfunção sensorial que nos diferencia dos outros nossos semelhantes, se essa dificuldade nos inferioriza ou marginaliza no contexto normal das coisas na sociedade civil e sociopolítica, parece que nos sentimos menos aptos e determinados para vencer essas constatações. No sentido de estabelecermos consensos para a funcionalidade e operacionalidade de todos, no relacionamento e interação na sociedade de todos, vamos recorrendo às mais diversas habilidades e competências, essencialmente de ordem infocomunicativa e sociocognitiva, usando as nossas diferenças para a eliminação de barreiras e necessidades uns dos outros e promoção da harmonia, solidariedade, partilha, e do direito à participação social. Sabendo-se que as palavras e as ações nem sempre falam a mesma língua, é urgente cultivar e instaurar essa cumplicidade humana séria, sobretudo quando certas bocas (as da conveniência/"politicamente correto") se abrem em situações alusivas à inclusão. Somos, por vezes, o que oportunisticamente nos convém, não olhando a meios para atingir fins.

Não há ninguém que goste de errar, embora às vezes, mesmo assumindo o desempenho de um determinado trabalho com mais ou menos responsabilidade e êxito, nos confrontemos com enganos que se revelam frutíferos. Como dizia Vergílio Ferreira, “é preferível um erro fértil a um trabalho estéril». Na correção que faço das frequências, exames e trabalhos académicos dos meus alunos e dos resultados em notas que lhes atribuo, isso gera sempre entre eles dúvidas de naturezas diversas, provocando-lhes essas dúvidas, sobretudo quando se deixam incorrer em situações de insucesso, sentimentos mais de crueldade do que de benevolência, mais de inveja do que humilde assentimento... Verifica-se esta manifestação entre os próprios estudantes, os que andam a passear nas aulas e os que se empenham na aquisição de competências e concretização de saberes.

“O homem é o melhor bem para o homem» (Espinosa), mas também “pode ser encarado como o seu pior inimigo» (Lévi-Strauss), podendo “deixar-se vitimar por impulsivos desejos próprios, os quais, com a força da inveja e como crianças destemidamente exigentes, se podem tornar cada vez mais prementes e incansáveis, levando o homem a superar-se para o bem ou para o mal, consoante o grau de benevolência ou de crueldade que o motivar.» (sustentamo-lo nós). 

A inveja é como “uma dor causada pela sorte que bafeja pessoas que nos são semelhantes» (Aristóteles). “A inveja não é senão o ódio em si próprio, na medida em que predispõe o homem para o gozo do mal de outrem e para a tristeza pelo bem de outrem.» (Espinosa). A inveja é considerada “uma tendência para observar com dor o bem dos outros, mesmo quando ele não traz qualquer prejuízo ao nosso próprio bem.» (Kant).

Para nós, mais do que definir a inveja, “definir é rodear por um muro de palavras um terreno vago de ideias.» (Samuel Butler), importa identificar em nós os sinais de um sentimento perturbador e daninho e procurar anulá-lo pela dignidade, num harmonioso e coeso desenvolvimento coletivo e humanizado, visto que invejar pode ser humano, mas, se estivermos humanizados nos grandes princípios e valores humanos, não alimentaremos a inveja nem outras nocividades humanas, que nos fazem cruéis e desumanos.

Todavia, cuidado com as circunstâncias que sempre somos, num contexto orteguiano, mas também sempre ganhamos competências cognitivas para permanecer na dignidade e na constância do bem dos outros e do nosso. Aliás, a constância ou, no dizer de Arturo Graf, “a perseverança é a virtude pela qual todas as outras virtudes dão fruto.».

Na realidade, “o mal escondido na grande maioria dos corações humanos pode surpreender-nos nas mais diversas formas, se a conscientização para a dignidade não tomar a tempo o seu lugar, desde o berço. Porque temos, numa generalidade, uma natural tendência para a crueldade e benevolência (por sermos essencialmente maus e bons), essa natureza cruel só é minimizável ou anulável através da ponderada, bem refletida e séria celebração estratégica de pactos sociais e políticos, religiosos, educomunicacionais e culturais, pedagógicos e de sensibilização pública, para o estabelecimento de entendimentos na ética e humanização da vida.» (ADG, 10.07.2012).

Para dar o meu contributo à humanização da vida, sinto que tenho de, com um bom estado de humor e bem parecer, ser o mais possível igual aos meus pares normovisuais. E isso tem-me dado algum trabalho, sobretudo na envolvência das mais ajustadas sinergias, umas que se conquistam naturalmente e outras que a curiosidade ou razões de índole diversa também acabam por motivar.

“As pessoas cegas só podem ter uma visão perfeita das coisas e da imensurabilidade universal, da objetividade e subjetividade, da abstração e conceptualidade, desde que nelas devidamente contextualizadas sob o ponto de vista sensoriocognitivo e sociocognitivo, inteligindo-as, experienciando-as e integrando-as, numa bem treinada, desenvolvida e aprofundada suplência multissensorial, constituindo esta capacidade e competência os seus olhos tiflopercepcionais e da intelecção, que lhes permitem ter e dominar, com a desejável precisão, o absorvente olhar analítico e abrangencial, da compreensão e intercompreensão na transformação de mentalidades e na humanização social.» (ADG, 22.06.2013).

Portanto, ser feliz (nesta possível aceção sinto-me feliz) é ter prazer no existir (adoro viver e procuro, no prazer de existir, promover bem-estar à minha volta). O grande psiquiatra, psicanalista, pedagogo, investigador e humanista João dos Santos, a quem se atribui a expressão "no prazer de existir", era feliz na sua naturalidade humanística, no seu saber humano e científico, na sua determinação e competência investigativa, na sua destemida ação e atuação interventiva, fomentando e promovendo investigação e desenvolvimento para o bem-estar e qualidade de vida à sua volta, muito em especial dos detentores de problemáticas severas da deficiência, que os condicionam ou impedem na sua sobrevivência normal, para poderem viver uma vida análoga à das pessoas epitetadas de escorreitas.

Amar é humanizar a vida. Todos nos temos de empenhar, com inegável e bem visível desempenho e êxito, na humanização da vida, acordando consciências e despertando comportamentos, assim criando e implementando metodologias estratégicas e humanas para o acolhimento e proteção, educação e formação dos cidadãos mais frágeis e carenciados de intervenção precoce, na infância e ao longo da vida (incluindo as respetivas famílias), deste modo propugnando pela cidadania e equidade em direitos e oportunidades no bem-estar biopsicossocial e qualidade de vida de crianças, adolescentes, jovens, adultos e seniores com graves incapacidades e desvantagens sociais.

Amar e ser feliz é um privilégio humano e conceptual que nos acompanha e carateriza desde o fundo dos tempos, mas em que temos por vezes dificuldade em embarcar e fazer dela o comboio em andamento permanente e vital das nossas vidas… da existência de todos nós.

Todos temos de ser capazes de entrar nesse comboio, redimensionar-lhe a locomotiva (nela colocando a nossa enérgica compassividade e um vigoroso motor coevolutivo) e algumas carruagens abandonadas ou esquecidas (dotando-as todas da classe conforto e das específicas acessibilidade e usabilidade), para que nelas todos, sem exceção, possamos viajar tranquilamente, em cidadania e equidade.

Para que haja prazer solidário no existir, temos de possuir sensibilidade, capacidade e competência, vontade e querer, determinação e irreversibilidade de ação e atuação, para sabermos condensar e concretizar virtudes afetivo-emocionais e/ou valências humanas férteis (consciências que acordamos e sequentes comportamentos que despertamos) para provocar e motivar, promover e compartilhar saberes e felicidade à nossa volta. Ninguém consegue ser feliz com infelicidade em seu redor. As dificuldades são fontes de solução. Basta que não nos deixemos vencer por elas. É assim que poderemos ser o Natal de cada um e de todos desde que, calorosamente, nos quisermos uns aos outros e nos amarmos sem medida numa justa festa para todos, numa perspetiva de equidade na justiça social, na paz, na esperança, na alegria, na generosidade... procurando ser uma luz permanente a iluminar os caminhos dos outros e os nossos também. Por isso é que o talismã de cada um de nós está no que cada um de nós é e no que com esse amuleto incendiamos de bem à nossa volta, semeando e cultivando felicidade.

Nesta aceção, e sem pretendermos ser redundantes, o segredo da felicidade está na liberdade e na verdade, na coragem e no assumido compromisso humano para, de forma abnegada e natural, entendermos e incorporarmos em nós mesmos, promovermos e partilharmos no meio envolvente esse polinómio em interajuda permanente também com aqueles que, pelo menos de algum modo, e independentemente das suas desvantagens ou maleitas, interagimos, interagem connosco… ou fazemos interagir consigo próprios e com a vida.

Para humanizarmos a vida temos de ser capazes de conciliar, enérgica e entusiasticamente, todas estas sinergias (endógenas e exógenas), valorizando, eticizando e solidarizando-nos na invenção e partilha de metodologias estratégicas e humanas interventivas para nos humanizarmos mais e humanizarmos mais a vida.

Amar e fazer amar é humanizar a vida e, assumindo de maneira indómita e interventiva essa prerrogativa, ser feliz é ter inquestionável prazer no existir.

Só amamos a vida e temos prazer solidário no existir,

a) Sobrepondo a generosidade e a gratidão, a inteligência emocional e a salutar promoção da consensualidade, a justiça e a paz às intempéries da desordem e dos desentendimentos, dos totalitarismos e fundamentalismos...

b) Sobrepondo, implicitamente também, o amor e os afetos, a liberdade e a verdade, a esperança e a tranquilidade, a solidariedade e a partilha aos egoísmos, oportunismos e avarezas...

“Para que a humanidade se ache em dignidade e frutifique em amor neste mundo de dúvida, complexo e perplexo, só temos que amar e fazer amar! Mas para que este sentimento dinamizador, ou este sentimento e esta ação intrinsecados um no outro resultem, temos de alicerçar esta realidade, o amar e fazer amar, numa determinação segura e disciplinadora, impulsionadora e reguladora desta convicção ativa e benéfica.» (ADG, 20.09.2011).

O que hoje se nos apresenta e entendemos como real e bom para todos, amanhã será diferente. A galáxia ou as galáxias em permanente descoberta (num ritmo de aparente multiplicação imparável) e, nelas, os inúmeros megapuzzles (infindáveis nos seus aparecimentos e nas suas montagens) com que cada um de nós, também igual megapuzzle, vai interagindo e à medida redimensionando conhecimentos e saberes, vamo-nos ajustando a um constante reequacionar de consciências e de comportamentos... “A vida afigura-se-nos, por vezes, demasiadamente curta para a entendermos a tempo como passagem regeneradora e frutificante, e nela conseguirmos sobreviver com as necessárias dignidade, esperança e fé, cientes da fisicalidade efémera e da espiritualidade eterna, que nos provoca, testa e purifica.» (ADG, 17.01.2018).

É que nascemos humanos, mas temos de nos conseguir humanizar em cidadania e equidade, em generosidade e nos grandes valores humanos, que são as nobres e dignas virtudes geradoras de abundância no relacionamento e interação sociais.  

“Para além das circunstâncias que somos ou do que nos fazem, somos o que conhecemos, o que sabemos e o que pensamos.» (ADG, 21.01.2018).

Sendo, para além do contributo de tantos outros pensadores ao longo da história, o segredo da felicidade a liberdade e o segredo da liberdade a coragem (Tucídides), o segredo da felicidade está no contribuir para a felicidade dos outros (Confúcio), no amor e não outra coisa, pois quem sabe amar é feliz (Hermann Hesse), num problema individual, em que nenhum conselho é válido, devendo cada um procurar por si tornar-se feliz (Freud), na própria casa, entre as alegrias da família (Tolstoi), na nossa alegria na alegria dos outros (Herculano), no amar e colocar a própria felicidade na felicidade do outro (Chardin), num perfume que não podemos derramar sobre os outros sem que caiam algumas gotas sobre nós (Ralph Emerson), na constatação que satisfaz verdadeiramente, acompanhada pelo completo exercício das nossas faculdades e pela compreensão plena do mundo em que vivemos (Russel)... Para nós, “A felicidade é um sentimento de bem-estar de alma e biopsicossocial que cultivamos e exercitamos de forma partilhada num coletivo infinitamente crescente, que nos habituamos a viver com uma fundada, sistematizada e fecunda determinação humana e humanizada.» (ADG, 09.06.2015).

Mesmo que um pressagiado pós-humanismo possa vir, desmedidamente, a surpreender-nos no tempo, na representatividade educomunicativa, pedagógica e cultural, para que a informatização/robotização global e cosmopolita nos catapulta (felizmente com o contributo das cidades educadoras, inteligentes, inclusivas), penso que nunca deixaremos de sonhar e de concretizar humanização em toda a dimensão cognitiva da dignidade. “Sonhamos o que os sóis no peito e na razão nos sorriem.» (ADG, 23.01.2018).

Só humanizamos a vida, tendo prazer solidário no existir e na partilha, comunicando e educando em cidadania, com humor e justiça social, equidade e perspetiva em dignidade e no progresso.

E-mail: deodato.guerreiro@ulusofona.pt

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