DIREITOS
Por Carlos Gonçalves, Advogado
Ao que parece, o Governo vem preparando, desde abril do ano passado, uma proposta de alteração ao totalmente anacrónico regime das incapacidades. Já não era sem tempo. Estas alterações há muito que se justificam, tendo em conta que o regime foi aprovado no Código Civil, em 1966, sem que, conquanto as mais de 30 revisões ao diploma, até ao momento, sofresse alterações dignas de relevo, e tendo em conta que, após a sua entrada em vigor, Portugal dispõe de nova Constituição. Além disso, as conceções acerca das tipologias de incapacidades e sobre a deficiência vêm sofrendo mutações, conforme se pode facilimamente constatar nos objetos das três leis de bases da reabilitação que se sucederam desde a entrada em vigor do Código Civil: a Lei n.º 6/71, de 8 de novembro (promulga as bases relativas à reabilitação e integração social de indivíduos deficientes), Lei n.º 9/89, de 2 de Maio (Lei de Bases da Prevenção e da Reabilitação e Integração das Pessoas com Deficiência) e a Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto (define as bases gerais do regime jurídico da prevenção, habilitação, reabilitação e participação da pessoa com deficiência).
Entraram em vigor mais duas leis que importa destacar e que contribuem para tornar completamente arcaico o regime jurídico das incapacidades: a Lei n.º 127/99, de 20 de agosto (Lei das Associações de Pessoas Portadoras de Deficiência) e a Lei n.º 46/2006, de 28 de agosto, que proíbe e pune a discriminação em razão da deficiência e da existência de risco agravado de saúde.
Face à obsolescência do regime jurídico das incapacidades, fruto da evolução do pensamento legislativo (e não do pensamento do legislador), na sua revisão que se aproxima, espera-se que a cegueira deixe de constituir fundamento para decretar a incapacidade de qualquer cidadão. Como é óbvio, sendo os cegos cidadãos de pleno direito, é-lhes reconhecido, com a qualquer outro cidadão, o direito à capacidade civil. Porém, uma das restrições ao direito à capacidade civil que se pode efetuar, já que se encontra prevista na lei é decretar judicialmente a incapacidade em razão da cegueira. De facto, não obstante a consagração constitucional do direito à capacidade civil, persiste no Código Civil português este anacronismo, que urge dele expurgar e que consiste na possibilidade de a cegueira constituir causa para decretar a incapacidade de uma pessoa, podendo, por isso, ser interditos do exercício dos seus direitos todos aqueles que, por cegueira, se mostrem incapazes de governar suas pessoas e bens e podendo ser inabilitados os indivíduos cuja cegueira, embora de carácter permanente, não seja de tal modo grave que justifique a sua interdição, mas se mostrem incapazes de reger convenientemente o seu património (cfr. N.º 1 do artigo 138.º e artigo 152.º ambos do Código Civil).
Esta possibilidade contraria a dimensão do Direito de transformação social e de democratização das sociedades e afigura-se totalmente inexplicável. Qual é a relevância ou a pertinência de manter neste compêndio normativo a possibilidade de decretar judicialmente a incapacidade de uma pessoa com fundamento na cegueira? Não existe qualquer relação, qualquer nexo de causalidade entre a cegueira e a incapacidade de alguém reger a sua pessoa e/ou gerir os seus bens.
Contemporaneamente, tem sido enfatizada uma dimensão do Direito como instrumento de transformação social e de democratização das sociedades, considerando as suas possibilidades e os respetivos limites, a partir da qual emergiu o princípio da dignidade da pessoa humana com vários afloramentos, diretos e indiretos, ao longo do texto constitucional. Esta ideia de dignidade da pessoa humana suporta o direito à capacidade civil, isto é, a medida de direitos e obrigações de que uma pessoa é suscetível de gozar (aptidão para ser sujeito ativo ou passivo de relações jurídicas) e/ou de os exercer livremente, praticando atos jurídicos. Aliás, nesta senda, a nossa Lei Fundamental reconhece, no seu artigo 26.º, a todos os cidadãos o direito à capacidade civil, que não pode ser afetada pela declaração do estado de sítio ou do estado de emergência e cujas restrições só podem efetuar-se nos casos e termos previstos na lei, não podendo ter como fundamento motivos políticos.
Por seu turno, a incapacidade é entendida como uma situação jurídica baseada na falta das qualidades psíquicas de entendimento, ou do poder de autodeterminação, necessários para o indivíduo reger a sua pessoa e gerir o seu património, decretada através de decisão judicial. A incapacidade de exercício consiste na inaptidão para atuar pessoal e autonomamente, para exercitar uma atividade jurídica própria.
Para além da menoridade, há dois tipos de incapacidade: a interdição e a inabilitação. Ao passo que a primeira colide com a liberdade individual, implicando uma restrição de direitos fundamentais, correspondendo a uma incapacidade pessoal e patrimonial, a segunda reporta-se a uma incapacidade limitada para atos de gestão e disposição patrimonial, não implicando uma incapacidade geral de atuação. Um incapaz ou é representado por um tutor, no âmbito da interdição, ou é assistido por um curador, no domínio da inabilitação. Em qualquer dos casos, está em causa a afetação permanente da autonomia privada do sujeito. Na verdade, enquanto a representação consiste na atuação de um tutor, exercitando um direito ou cumprindo um dever ou obrigação, em nome e no interesse do incapaz, a assistência corresponde à admissão legal da atuação do incapaz, mas exige o consentimento e a colaboração do curador, autorizando ou comparticipando ou confirmando essa atuação. Quer o tutor, quer o curador, intervêm no exercício de direitos, no cumprimento de deveres e obrigações e na gestão do património da pessoa incapacitada, sempre tendo em vista a sua proteção.
A cegueira, a par da “anomalia psíquica” e da “surdez mudez”, constitui, pois uma causa determinante da interdição e a par da “anomalia psíquica”, da “surdez-mudez”, da habitual prodigalidade ou do abuso de bebidas alcoólicas ou de estupefacientes, constitui um fundamento para a inabilitação.
Como já dissemos, não se vislumbram, por maior esforço que se empreenda, em que medida a cegueira poderá ser causa de incapacidade civil, pois que não implica a falta das qualidades psíquicas de entendimento, ou a ausência do poder de autodeterminação. Aliás, é a própria Constituição que proclama, no n.º 1 do artigo 71.º, que os cidadãos portadores de deficiência física (entre os quais os cegos) ou mental gozam plenamente dos direitos e estão sujeitos aos deveres consignados na Constituição, com ressalva do exercício ou do cumprimento daqueles para os quais se encontrem incapacitados. Este direito comporta duas dimensões essenciais: por um lado, uma vertente negativa, que consiste no direito dos deficientes a não serem privados de direitos ou isentos de deveres e, por outro, uma vertente positiva, que consiste no direito a exigir do Estado a realização das condições de facto que permitam o efetivo exercício dos direitos e o cumprimento dos deveres.
Trata-se da afirmação categórica e inequívoca do direito das pessoas com deficiência a gozarem e a exercerem os mesmos direitos dos restantes cidadãos e a estarem sujeitos aos mesmos deveres. Constitui, por isso, um direito a não serem vítimas de uma capacidade diminuída por motivo da deficiência, para além daquilo que, de facto e pela natureza das coisas, seja consequência necessária da deficiência.
O n.º 2 do artigo 12.º da Convenção Sobre Os Direitos Das Pessoas Com Deficiência sublinha que “os Estados Partes reconhecem que as pessoas com deficiências têm capacidade jurídica, em condições de igualdade com as outras, em todos os aspetos da vida”, acrescentando o n.º 5 que “(...) os Estados Partes tomam todas as medidas apropriadas e efetivas para assegurar a igualdade de direitos das pessoas com deficiência em serem proprietárias e herdarem património, a controlarem os seus próprios assuntos financeiros e a terem igual acesso a empréstimos bancários, hipotecas e outras formas de crédito financeiro, e asseguram que as pessoas com deficiência não são, arbitrariamente, privadas do seu património.”
E a Lei n.º 38/2004, de 18 de agosto, já citada, no seu artigo 7.º dispõe que a pessoa com deficiência tem o direito de decisão pessoal na definição e condução da sua vida. Nem poderia ser de outro modo.
Se os cegos participam diretamente na formação da vontade coletiva das suas associações, se são capazes de se autorrepresentar coletivamente, se agem em defesa coletiva dos seus direitos e interesses legalmente protegidos e em defesa coletiva de direitos e interesses individuais e se participam e intervêm na definição das políticas públicas que lhes dizem diretamente respeito, seria inconcebível que a cegueira pudesse constituir causa de incapacidade da sua autorrepresentação individual.
A cegueira não impede o desenvolvimento individual e independente da vida quotidiana, tão-pouco condiciona a autonomia privada e, por conseguinte, não limita a liberdade de praticar todos os atos jurídicos, designadamente o exercício dos direitos e interesses próprios, a liberdade de celebração de todo o tipo de contratos e a liberdade de estipulação de cláusulas nos mesmos.
O reconhecimento da autonomia individual dos cegos não significa que, com mais ou menos frequência, no domínio da decisão pessoal na definição e condução da sua vida, solicitem o auxílio de familiares e amigos para o desempenho de algumas atividades, funções e/ou tarefas. Porém, essas solicitações partem de si, se e quando o entenderem, e não são impostas por outrem.
Felizmente, entre nós, não se conhece qualquer decisão judicial dos tribunais superiores que tenha decretado a incapacidade (interdição ou inabilitação) por motivos de cegueira.
Mesmo relativamente aos restantes fundamentos para o decretamento da incapacidade, nomeadamente por anomalia psíquica, os nossos tribunais vão tendo bom-senso. Curiosamente, a propósito de uma ação especial de interdição, proposta por uma pessoa contra a sua irmã, por anomalia psíquica desta, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu, por Acórdão de 29 de 2003, que, não se tendo provado a anomalia psíquica mas um caso de enorme déficit cultural, fruto do seu anterior modus vivendi, bem espelhado nos autos e paupérrimo em possibilidades de aquisição de conhecimentos (levou uma vida dedicada à pastorícia, e ao amanho da terra, de manhã à noite), não pode decretar-se a interdição nem a inabilitação. “(...) não sabe ler nem escrever, não por ser incapaz de aprender mas por os pais a não terem deixado frequentar a escola, por necessitarem da ajuda dela no trabalho; não conhece o dinheiro, mas porque ninguém lho facultava, e não o esbanja, guardando-o e dando-o a guardar; não sabe ler as horas, mas sabe as horas das refeições e do recolher e conhece os dias da semana.”
Em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14 de julho de 2011, tão-pouco se decretou a incapacidade por anomalia psíquica, já que, “(...) não obstante a sua idade, rege ainda a sua vida e a sua casa de forma capaz: alimenta-se com normalidade, hidrata-se e mantém-se fisicamente apta em consonância com a sua idade, tem esmero e cuida da sua higiene e aparência, indo ao cabeleireiro, tem uma vida social ativa, visitando amigas, recebendo visitas, se bem que muitas vezes transportada no veículo do seu sobrinho. A pesar da existência de enfermidades permanentes e que afetam a sua capacidade intelectual, e que progressivamente irão reduzi-la, (...)”.
Espera-se, então, que, desta vez, o legislador, se esforce por ir ao encontro do pensamento legislativo, e expurgue do Código Civil a possibilidade de decretar a incapacidade em razão da cegueira, em homenagem ao princípio da dignidade da pessoa humana.