Tecnologia, orientação e mobilidade: algumas considerações
É consensual que a bengala branca e/ou o cão-guia são as ferramentas utilizadas pelas pessoas cegas e com baixa visão na sua orientação e mobilidade, fundamentais para a autonomia, inclusão e realização. Curiosamente, mesmo num mundo de cada vez mais rápida evolução tecnológica, não se vislumbram soluções high-tech que os consigam substituir.
No entanto, têm surgido, ao longo dos tempos, várias ideias e ajudas que, quando usadas em complemento à bengala e/ou cão-guia, têm tido resultados práticos interessantes. Outras falharam miseravelmente, o que não implica que não tenham o seu lugar na história. O futuro próximo trará certamente grandes novidades. Com este artigo tentarei dar uma perspectiva genérica do que tem surgido e pode vir a existir como complemento à mobilidade das pessoas cegas e com baixa visão, desde as mais usuais aplicações para smartphone baseadas em GPS até à utilização de inteligência artificial e visão computacional como ajuda à navegação. A integração com os novos paradigmas da Internet of Things (IOT) e smart cities também serão abordados.
Comecemos pelo essencial: a bengala branca. Se, na sua versão mais básica, se trata apenas de um tubo subcomprido com uma ponteira (tipos de ponteira e materiais de fabrico à parte) vários tentaram torná-la mais "inteligente" e poderosa, na minha opinião sem o sucesso esperado. Produtos como a Ultracane [1] baseiam-se na emissão de ultra-sons para detectar obstáculos no caminho, tanto na zona mais perto do chão (como a ponteira da bengala) bem como à altura do peito e da cabeça, informando o utilizador dos mesmos através de feedback tátil no punho. Outras soluções recorrem a feedback sonoro ou outros, e algumas tentam mesmo substituir a bengala física. No entanto, talvez pela sua complexidade de utilização e curva de aprendizagem, têm pouca fiabilidade na detecção de alguns materiais e elevado preço. Não é comum encontrar-se pessoas cegas e com baixa visão a recorrer a eles. Ainda assim, a utilização de sensores especialmente na proteção de zonas como o peito e a cabeça, parece-me ter potencial interessante no complemento a uma bengala comum e mesmo a um cão-guia. Uma ideia nestes moldes foi proposta no projecto de crowdfunding buzzclick [2].
Com o advento dos smartphones com acessibilidade e GPS, internet em todo o lado e mapas com informação virtualmente infinita, foi possível criar diversas aplicações específicas para a deficiência visual para apoio à navegação, tal como recorrer a aplicações existentes de uso genérico. Soluções como o Blindsquare ou Areadne GPS, já mencionadas em edições anteriores desta revista, permitem que uma pessoa cega ou com baixa visão tenha noção geográfica de onde está, pontos de interesse que pode encontrar em seu redor, direcção e distância para os mesmos, bem como ser avisado activamente da aproximação a locais por si determinados, especialmente relevante em viagens de transporte. Por outro lado, ferramentas comuns como o googlemaps ou foursquare permitem obter direcções e informação diversa sobre trajectos e lugares, disponível e útil para todos, mas são inexistentes previamente para o acesso das pessoas com deficiência visual. No que respeita aos transportes, aplicações como o Move-me e mesmo soluções específicas de empresas de transportes como a CP têm possibilitado, através da utilização de smartphones, que os passageiros cegos ou com baixa visão tenham bastante melhores acessos aos horários e trajectos dos transportes públicos. Além disto, a acessibilidade em aplicações de empresas de táxis e transporte em veículos descaracterizados como a Uber, revelou-se bastante importante na popularidade desses serviços para este público, potenciando a sua autonomia, liberdade e privacidade nas deslocações.
Não desprezando a mudança revolucionária que os smartphones trouxeram à vida das pessoas com deficiência visual, não é de menos importância identificar as limitações e restrições impostas pela tecnologia actual, no que respeita à sua precisão e eficácia. O GPS presente em smartphones conta com margens de erro até aos 50m para uma utilização aceitável, o que, apesar de suficiente para a navegação em veículos automóveis e utilização comum, é manifestamente pouco para auxiliar de modo totalmente seguro a navegação de pessoas com deficiência visual. Para além disto, a informação dos mapas existentes na maioria dos dispositivos não foi adequada para as necessidades específicas desta utilização, o que impede, em diversas situações, a correcta interpretação da mesma.
Se o smartphone é um dispositivo de utilização individual, quando pensamos na acessibilidade na via pública, no urbanismo e nos transportes há um imenso potencial que a inovação tecnológica pode trazer, se integrada nas próprias cidades e espaços. Aplicações como o já referido Blindsquare suportam a detecção de "Beacons" (pequenos dispositivos colocados em locais como lojas, paragens de autocarro, etc) que ao serem detectados informam o utilizador de informação específica sobre o local onde se encontra, bem como o seu tipo (escadas, portas, paragens, etc). Esta intervenção existe, mesmo que em protótipo, em cidades como Toronto e alguns centros comerciais [3,4]. Aliás, um projecto similar, apesar de recorrer a tecnologia bastante mais simples, o sistema GUIO®, implementado em centros comerciais portugueses, permitia que as pessoas cegas e com baixa visão levantassem um dispositivo que, ao circularem pelo espaço, ia reproduzindo informações em áudio sobre o espaço, lojas na proximidade e pontos de interesse como escadas ou WC. Tais sistemas e iniciativas, apesar de interessantes e apresentarem enorme potencial, não se têm desenvolvido ao ponto de serem comuns encontrar em cidades de países desenvolvidos ou comercialmente viáveis, para já.
No entanto, sem soluções simples como semáforos sonoros, piso tátil para localizar travessias ou mobiliário urbano bem colocado, a tecnologia não resolverá quaisquer problemas de base, provavelmente ainda criará novos. É também essencial que se pense na acessibilidade da informação presente nas cidades como útil a todos. Por exemplo: se para uma pessoa cega a capacidade de consultar a informação de horários numa paragem de autocarro através do telefone é essencial, para os restantes será, pelo menos, mais uma possibilidade.
Os desenvolvimentos na inteligência artificial e visão computacional preconizam um futuro risonho para as aplicações de auxílio às pessoas cegas e com baixa visão. Até ver, são do meu conhecimento apenas protótipos vindos da academia de limitada utilização - ver por exemplo um sistema de detecção de portas [5], ou uma solução de mapeamento de ambientes visuais para outros sentidos [6]. A evolução na classificação e descrição de imagens e objectos, já demonstrada em aplicações para smartphone como o Seing AI ou mesmo na descrição de imagens do Facebook, poderá, no entanto, ser o ponto de partida para cenários mais complexos como o auxílio à mobilidade. Por outro lado, a tecnologia inerente aos carros autónomos tão em voga partilha de diversos pontos comuns (detecção de obstáculos, compreensão do comportamento de outros veículos) o que provavelmente será mais um foco de inovação neste campo.
Como já referido, com toda a inovação e tecnologia que dispomos, ainda não existe, nem se prevê existir a curto prazo, soluções de auxílio à orientação e mobilidade de pessoas cegas e com baixa visão que possam, de algum modo, substituir a bengala branca ou o cão-guia. Wafa Elmannai e Khaled Elleithy apresentam uma meta-análise recente sobre dispositivos baseados em sensores [7] (a maioria desenvolvidos na academia) onde concluem que, apesar de todos os esforços, nenhum deles se adequa totalmente às complexas exigências a que se propõem. Tal é também a minha opinião. Ainda assim, julgo que será cada vez mais relevante o papel da tecnologia e da inovação na orientação e mobilidade das pessoas cegas e com baixa visão.
[2] https://www.indiegogo.com/projects/the-buzzclip-wearable-mobility-tool-f...
[3] http://blindsquare.com/wp-content/uploads/2015/06/Solving-way.pdf
[4] http://www.hamk.fi/english/collaboration-and-research/smart-services/mat...
[5] http://xiaodongyang.org/publications/papers/icchp10.pdf
[6] http://openaccess.thecvf.com/content_ICCV_2017_workshops/papers/w22/Cara...
[7] https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC5375851/
Por decisão pessoal, o autor deste artigo não escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico.