A justificação “porque é cego” deverá ser usada em quaisquer circunstâncias?

Não. Nem para encarcerar num limiar penalizante de miséria. Muito menos para relevar o plano incomodatício das consciências.

Que humanidade resgatará tais penas?

Três asneiras crassas sobre deficientes visuais: inválidos, audiovisuais e invisuais.

Inválidos? Sim, porque como é que alguém pode singrar sendo portador de uma das maiores desgraças do mundo?!

Audiovisuais? Claro, porque vai tudo para o mesmo saco. Escolhe-se um termo próximo banal e pouco importa se é cego ou surdo; o que prevalece é ser coitado.

Invisuais? Naturalmente, porque ninguém os vê mesmo. Ninguém lhes liga nenhuma. Demasiada gente lhes pede muito tudo e lhes dá muito pouco.

Assim se alivia a consciência de alguns e se prostra a cidadania de uns tantos.

Serão os cegos omniestúpidos? Alguns despejam-lhes efusivamente o açúcar na chávena sem acautelarem o seu gosto. Outros, quando avisados de que não querem adoçar, retiram-lhes compulsivamente o pacotito e a colherita. Indefesos perante tal destreza, submissos a tanta certeza, que dizer, que fazer? Sorrio inconformado. Os cafés esfumam azedumes…

Nos passeios citadinos, abundam resíduos caninos como lixinho doirado. Porque forçam cidadãos indefesos a pisarem indetetáveis pepitas intestinas de luxos alheios?

Ditames do vulgo sobre as autonomias cegas que tão militantemente ignoram: “Que nem querem, que nem gostam, que nem precisam!”

Não serei melindrado ou lisonjeado por ser cego, mas por ser quem sou.

Cego cidadão de corpo inteiro? Excetuando, naturalmente, os olhos. Que não as vistas!

Quem não sabe é como quem não vê? Ora essa!

Os cegos são campeões de vendas?

A vida já me arrancou os olhos. Que mais não quererá de mim?

A cegueira é uma obstrução no olhar. Porquê uma mutilação no estar?

Na inviolação dos dotes, porquê os diferentes depois?

Só agora, que superei muitos e muitos dos pesos mundanos da cegueira, é que me apercebo da irrelevância para o vulgo. Pra quê tanta canseira?

O cego tem de estar num patamar acima, para que se lhe não impeçam as perspetivas?

Sou um cego invisual que pede desculpas aos transeuntes que não o veem.

Se cego é ser Sísifo, carregar o preconceito. Na rua e na Lua.

Se não conseguires amar um cego, isso não significa não conseguir ele amar-te.

A bengala é o joystick do cego. No jogo dos mundos, inconstante e louco, o sentido é uma viela que luz.

Se dizes a um cego que gosta de ti para não te tocar, estás a condená-lo ao degredo.

Assim poderá ser por amor?

Toda a vida é uma aventura cega. E revemo-nos nela.

Porque seria desprovido o ponto de vista dos cegos?!

O vulgo não calcula o esforço de ser cego. Por isso o sopesa em desgraça.

A vida fez-me cego para que abrisse os olhos?

Já vi tudo. Não vejo nada. Duas faces da mesma asneira.

O mau hálito é incrível. Até o cego vê.

Ser cego não é “mau-olhado”, os deficientes é que são mal olhados.

Pior que um zarolho com terçolho, só um cego com otites.

Quando alguém na via pública, alheado, choca frontalmente comigo, penso sempre (mas nem sempre lho digo): “deixe lá, eu também sou cego!”

Não ver não é defeito, é preceito.

Na civilização do audiovisual, será pensável a ausência da rádio? A rádio é a televisão cega.

Conhece a tese corretora do “bizarolho”? Sou mais cego ou bizarolho que invisual. Assim, sempre tem algum rigor e algum humor. E não me encarceram em latinices erróneas: invisual aplica-se a algo que não é visto e não a quem não vê. Em abono da verdade, o termo correto (e que abrange todos os possuidores de alguma deficiência significativa na visão, ou seja, os cegos e os amblíopes) é “deficiente visual”.  A não ser que “invisual” se aplique a essa preconceituosa indiferença social a que uma imensa maioria vota os deficientes. Estão a ver, não estão?!...

Se quem governa nos rouba a olhos vistos, os deficientes visuais não deviam ser poupados?

Não poderá ser o lugar do cego o de supervisão?

Ardileza do preconceito: individualmente cego, mas socialmente invisual. Entre a desgraça e a indiferença, subtis são as bestas vigentes.

Igual perante a lei. Desigual perante a grei. Ceguei?

É bom de ver: não se pode ver tudo!

Saber urgente: ver diferente.

Para que serve sermos tudo isto? Logo veremos…

A cepa do cego também tem bago.

Dos amores estilhaçados, como se fossem olhos, refaço-me da cegueira instante. E, no devir de ti, vislumbro destinos de luz.

Se Deus um dia dissesse: “Que o cego veja quando beija!”, não seria assim melhor o mundo?

A cegueira é a morte da luz ou uma vida de cruz? Viver é ressuscitar?

O cego tem sempre pressa de ver.

Seja cego se não vejo!

Diz o cego careca: “olhares e capilares não são o meu forte…”

Entre ver e não ver, estamos todos nós.

Cego na dança e na esperança.

Ser cego não é ser morto no ver. É ser morto por ver.

Diz o cego que através da noite também se aprende.

Ser cego é um certo olhar?

Os cegos não vivem de noite. Vivem com a noite.

Os cegos são fenómenos elétricos: fazem da noite dia…

Gosto de me mascarar de cego no Carnaval. As pessoas pensam, e bem, que estou a brincar com o mundo.

Ser cego não são vistas mansas.

A cegueira é uma visão crioula. 

 

*Artigo de opinião, por Alves Godinho - Revista Louis Braille n.º 26