Cidades pouco inclusivas aprisionam cegos em casa | Discurso Direto

"O espaço público é de todos. Muitos dos problemas detetados entroncam na falta de civismo das pessoas e na necessidade de efetiva fiscalização das leis", Rodrigo Santos, Presidente da Direção Nacional da ACAPO

Por Zulay Costa, Discurso Direto in Jornal de Notícias, 19/03/2023

Tem havido melhorias na acessibilidade, mas ainda há um longo caminho a percorrer para as cidades portuguesas serem "efetivamente inclusivas" e, para que todos, independentemente das suas limitações, possam aproveitar o espaço público e movimentar-se em segurança. Rodrigo Santos, presidente da Associação de Cegos e Amblíopes de Portugal (ACAPO), não tem dúvidas de que a mudança implica mais sensibilidade e civismo.

Ao longo dos últimos anos têm surgido sistemas sonoros em alguns transportes públicos, semáforos sonorizados, sinalização horizontal e piso táctil em vários locais. Os esforços no Porto, por exemplo, têm sido reconhecidos, com a Invicta a chegar à fase de finalistas do prémio da União Europeia "Acess City" 2022.

Mas tirar bilhetes em algumas máquinas de transportes continua a ser "difícil", não é raro um autocarro chegar à paragem e não avisar a quem tem dificuldades de visão "qual é e para onde vai", há sistemas sonoros que "não funcionam ou são desligados", descreve Rodrigo Santos. A isto acresce o risco dos veículos elétricos que nem sempre se ouvem nas "cidades barulhentas", o "caos absoluto de trotinetas e outros veículos estacionadas nos passeios, nas passadeiras, encostados à saída do metro ou paragens de autocarro".

"Já perdi a conta à quantidade de pessoas que tiveram bengalas partidas por carros a sair de garagens, que seguem viagem e nem querem saber", acrescenta, sublinhando que a bengala é precisa para os cegos circularem e "custa no mínimo uns 50 euros".

"Há falta de civismo e défices enormes na falta de fiscalização", lamenta o dirigente da ACAPO, sublinhando que o "espaço público é de todos". Mas, "com todas estas barreiras, há pessoas que têm medo de sair de casa porque sentem que não se conseguem deslocar de forma autónoma e segura" nem sequer na sua cidade, quanto mais "para fazer turismo". Ficam "aprisionadas". A falta de acessibilidades adequadas pode mesmo "matar", diz Rodrigo Santos, lembrando a queda fatal, há cerca de uma década, de um dirigente da ACAPO em Coimbra.

Paula Trigueiros, docente da Escola de Arquitetura da Universidade do Minho, que se tem debruçado sobre este tema e leciona uma unidade sobre design inclusivo, diz que as pessoas cegas ou com outros problemas de mobilidade "não têm de estar numa redoma". Precisam de "ter acesso à informação, algo tão importante como retirar os obstáculos físicos".

As soluções de mobilidade e o planeamento do território requerem "sensibilidade" e devem ter em conta quem não vê, não ouve, quem se desloca em cadeira de rodas, idoso com andarilhos, carrinhos de bebé, ou com qualquer outro tipo de limitação. "É importante estar sensível, atento, informado e estudar devidamente as soluções, fazendo intervenções eficazes".

Relatório

De acordo com o Relatório Mundial sobre a Visão (publicado em 2019) há, pelo menos, 2,2 mil milhões de pessoas que têm uma deficiência visual. Em Portugal, estima-se que existam cerca de 35 mil pessoas com cegueira e quase 590 mil com perda parcial de visão. A expectativa, considerando o envelhecimento e mudanças no estilo de vida da população, é que a necessidade de cuidados oftalmológicos aumente de forma significativa nas próximas décadas. Há muitas causas de cegueira evitável quando tratadas atempadamente, como é o caso do glaucoma e da retinopatia diabética.

 

Semáforos com vários atravessamentos deviam ter sons distintos | Reportagem

"É muito triste quando a sociedade precisa de algo para impedir que se estacione num determinado sítio proibido, porque isso só atrapalha quem já tem dificuldades", Ana Bessa

Por Zulay Costa, Reportagem in Jornal de Notícias, 19/03/2023

Uma vez bateu de cabeça contra um camião parado no passeio em frente a um prédio em obras, porque a bengala não o detetou. Noutras ocasiões, saiu na paragem errada do autocarro porque o motorista se esqueceu de a avisar e andou perdida durante horas debaixo de chuva. A Ana Bessa, que perdeu a visão pouco depois de nascer, não faltam histórias de sustos nas ruas do Porto, a provar que ainda há mudanças que é preciso fazer no espaço público e na sensibilização das pessoas, para que as cidades sejam efetivamente inclusivas para quem não vê ou tem baixa visão.

Ana Bessa reside em Ramalde e, apesar de já não estar a trabalhar (foi telefonista numa escola), não gosta de se "isolar", pelo que praticamente todos os dias percorre ruas a pé, apanha o metro e vários autocarros para chegar aos locais que pretende e participar em iniciativas para se manter ativa. "Vou fazer atividades, vou às compras, tenho quase sempre de sair de casa", diz.

Tem havido melhorias, como a instalação de piso táctil ou marcas junto a "algumas passadeiras e paragens de autocarros", mas ainda há “muito, mas muito a fazer", diz Ana Bessa.

"Podem achar que é repetição, mas há problemas que se mantêm: carros em cima dos passeios e de passadeiras, postes no meio dos passeios, em alguns locais pilaretes para impedir o estacionamento nos passeios, canteiros mal localizados, trotinetas estacionadas nos passeios", enumera.

A Polícia, considera Ana Bessa, deve estar mais atenta às infrações e tentar "sensibilizar" os automobilistas. "É muito triste quando a sociedade precisa de algo para impedir que se estacione num determinado sítio proibido, porque isso só atrapalha quem já tem dificuldades", lamenta.

Na Trindade, há um semáforo com sinal sonoro a indicar quando está verde para os peões poderem atravessar. Mas "nunca sei se é para o lado que quero atravessar porque tem várias passadeiras que estão verdes em alturas diferentes", aponta ainda, sugerindo às autoridades que coloquem "sons distintos".

Usar os transportes públicos é outro desça fio. Em algumas estações de metro "há obstáculos até dizer chega e nem sempre é fácil encontrar as máquinas de bilhética e usá-las". Nos autocarros, reconhece, há "bons motoristas", mas há muitos que não avisam qual o número da rota e paragens.

"Às vezes fala-se tanto de inclusão, mas ainda estamos muito longe. Devia haver mais sensibilização", desabafa.

 

Fonte: Jornal de Notícias