Desde tempos imemoriais que é conhecido que a música tem uma estreita relação com as pessoas cegas, em muitas delas sendo descortinada boa dose de sensibilidade para o cultivo da arte musical.

A obra épica “Odisseia”, atribuída ao hipoteticamente também cego Homero, denuncia-nos esse facto, apresentando-nos entre os seus figurantes uma espécie de peregrino jogral igualmente cego, chamado Demódoco, que por toda a Grécia proclamava, de forma cantada, os feitos de Ulisses e as suas frotas.

O evoluir dos tempos foi-nos trazendo abundante informação sobre a existência destes protagonistas, sendo conhecidos nos tempos hodiernos muitos nomes sonantes da música. Não escapam ao nosso conhecimento nomes famosos internacionais, como por exemplo, Stevie Wonder, Ray Charles, José Feliciano, Joaquim Rodrigo ou André Boccelli.

Entre nós, antes desse tipo de ensino ter sido assumido e estimulado por instituições particulares no dealbar do fim do século XIX até princípios dos anos 60 do século transato, pouco se sabe, apenas se constata a realidade de que a música era tida como uma atividade profundamente próxima de quem era cego, e a título meramente indicativo, diremos que nos chegam fotografias do fim do século XVIII exibindo multidões a dançar e a cantar as “Modinhas”, em que os seus executantes são indivíduos afetados por deficiência visual total.

Pode admitir-se que até há bem pouco tempo, meados do século passado, a profissão de músico pontuava proeminentemente entre os cegos, relevando a existência de colégios internos e estruturas associativas que superintendiam nessa formação, como aconteceu em Portugal com o Instituto de S. Manuel, no Porto, o Instituto de Castelo de Vide e os Institutos António Feliciano De Castilho e Branco Rodrigues, na área de Lisboa, e ainda a Associação de Beneficência Luís Braille, na mesma cidade. Desses alfobres despontaram exímios intérpretes que tiveram com a música não só a garantia do seu sustento, como se celebrizaram como concertistas e docentes.  

Este status quo manteve-se até cerca de meados dos anos 60, altura em que o Estado, pelos Ministérios da Saúde, Segurança Social e da Educação começaram a assumir o ensino especial, postergando por completo a docência da música a estas pessoas, apondo vários argumentos, como seja o surgimento da reabilitação das pessoas com deficiência e a consequente abertura no campo profissional e da empregabilidade em virtude da falta de mão de obra ao tempo das guerras coloniais, para onde eram encaminhados muitos braços disponíveis da juventude. Mas o argumento principal consistia no facto erróneo de que a aprendizagem da música pelos deficientes visuais conduzia ao aumento do surto da mendicidade reinante no País.

Com este grave hiato perdeu-se desta forma muito do conhecimento existente ao tempo, quer sob o ponto de vista intelectual pela falta de quadros, quer sobre o ponto de vista documental, em virtude da destruição de acervos bibliográficos, tornando-se no momento muito penoso retomar esta atividade, pois vai sendo “unanimizada” a ideia de que é importante fazê-la regressar, não sonegando mais às pessoas visadas o direito do seu exercício, seja com aspirações profissionais, artísticas ou de mero lazer e, acima de tudo, em prol dos princípios da igualdade, de que o Estado Português se proclama arauto.

Num momento em que atualmente vêm acontecendo transformações económicas e sociais de tomo, em que grassa o desemprego na comunidade deficiente, é preciso entre os deficientes visuais encontrar neste filão artístico as saídas profissionais que ele potencia, e vontade não falta para que tal desiderato se desenvolva, percebendo-se de forma clara o interesse dos intervenientes na reabilitação, formação e educação destes cidadãos de que se tem de reabilitar esta atividade entre os deficientes visuais portugueses que se interessem pelo cultivo da arte musical, enveredando pela sua aprendizagem académica.

Pensamos que, para se atingir esse ressurgimento, torna-se inevitavelmente imperioso e necessário congregar sinergias em toda a amplitude que o problema acarreta, desde meios humanos a meios materiais. Dos meios humanos é preciso definir quem pode ser docente nesta matéria, que passa por um domínio profundo do sistema Braille e pelo conhecimento da arte musical.

De entre tais quadros, há que recrutar aqueles que dominam estas matérias, aproveitando inclusivamente aqueles deficientes visuais ainda disponíveis que delas são conhecedores, sobretudo para ensinarem os futuros docentes.

No que concerne aos recursos materiais, impõe-se fomentar a existência de Bibliotecas com acervos musicais próprios, articulando-se com as bibliotecas estrangeiras especializadas neste ramo.

Conclui-se do que vimos expondo que a aprendizagem da Musicografia é a antecâmara do ensino da música, condição sem a qual se não pode enveredar no domínio desta.

Todavia, nem tudo é arenoso no novo enquadramento que perspetivamos, pois que as novas tecnologias vêm nos tempos que correm propiciar uma preciosa ajuda facilitadora da docência e aprendizagem desta nobre arte: o Musibraille e o BME, Editor de Música em Braille.

Torna-se evidente que, quem queira enveredar por essa aprendizagem tem necessariamente que dominar o sistema Braille em profundidade, para poder ler os textos musicais com desenvoltura, depois de um aprendizado específico e vocacional.

O método musicográfico Braille foi o sucedâneo imediato do código deste sistema que se deve a Luís Braille, apenas conhecendo poucas alterações, a última das quais desemboca na edição unificada do Código Musical Braille de 1998, válido para a música neste sistema em todo o mundo.

De facto, este método, o primeiro que foi concebido pelo criador do Sistema após a criação do sistema padrão, assenta numa abordagem também sistemática a partir da sua alma mater, apresentando uma leitura fácil e intuitiva. Basta referir que a sua leitura e interpretação assemelha-se a um raciocínio transversal, como que em l, uma vez que a leitura da pauta musical é vertical e o resultado em Braille é convertido em modo texto, que se lê portanto de forma horizontal. As 63 combinações permitidas pela escrita Braille, tal como ela é concebida na sua génese, 6 pontos, são absorvidas pelo sistema. Na musicografia recorre-se aos símbolos duplos, em vez do recurso aos 8 pontos, como evidenciam as regras do novo Código Musicográfico Braille de 1998, adotado pela União Mundial de Cegos e pela UNESCO.

Exortamos os poderes públicos para contribuírem eficazmente para a disseminação deste Código, estimulando, em conjunto com os entes privados, a sua propagação por todo o país, levando às escolas, às Universidades, mesmo criando nos grandes centros escolas específicas.

A todos os que possam e queiram fazer exercício desta atividade como docentes, desde que reúnam os requisitos atrás enunciados, exortamo-los também para por ela enveredarem. Deste modo, não temos grandes dúvidas que se vencerá este desafio.