Voto em Braille: Um passo a mais no caminho para a cidadania inclusiva
Em 2019 esperam-nos três momentos eleitorais que graças ao trabalho que foi feito em 2018 serão certamente mais inclusivas. Foi publicada em agosto do ano passado uma alteração a várias leis eleitorais para Presidente da República e deputados à Assembleia da República que traz, para as pessoas com deficiência visual, uma novidade bastante relevante: a possibilidade do exercício do direito de voto em condições de liberdade e autonomia, através da designada matriz de voto em Braille.
O direito de voto tem sido, nas últimas décadas, um dos principais instrumentos dos povos para fundamentar a autoridade dos poderes públicos. Assim se dá cumprimento ao n.º 3 do artigo 21.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, adotada em 1948 pela Organização das Nações Unidas. O direito de eleger e ser eleito é, de resto, um dos principais direitos políticos que é conferido a qualquer cidadão, sendo pois uma das dimensões mais importantes da cidadania. Para além da consagração na Declaração Universal dos Direitos do Homem, que já prevê que o voto deva ser exercido em liberdade, o referido direito foi depois regulamentado no Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, adotado pela mesma organização em 1966 e que entrou em vigor em 1976. O n.º 2 do artigo 25.º deste pacto consagra o direito de qualquer cidadão a votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal, por voto secreto que garanta a livre expressão da vontade dos eleitores. Quer isto dizer que, para se cumprir verdadeiramente o espírito desta norma, devem existir eleições periódicas para os órgãos de direção da vida pública, e nelas deve ser garantido que todos podem votar, e que esse voto possa ser exercido em verdadeiras condições de liberdade, sem estar sujeito a qualquer tipo de pressão, política, social ou outra, expressando-se o voto de forma secreta. Também no caso das pessoas com deficiência, a Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência consagra, no seu artigo 29.º, o compromisso dos Estados partes (como Portugal) para que as pessoas com deficiência possam exercer os seus direitos políticos em condições de igualdade com os demais cidadãos, designadamente, garantindo procedimentos e instalações de votação acessíveis, protegendo o seu direito à livre expressão do voto, por voto secreto, assegurando o recurso às novas tecnologias sempre que se justificar, e possibilitando a assistência, por pessoa da sua livre escolha, na hora de exercer o seu direito de voto.
A partir daqui, são várias as formas possíveis de organizar uma votação. Em Portugal, nos órgãos de soberania em que existem eleições universais, o voto tem sido expresso habitualmente através do assinalar, em boletins próprios e através de uma cruz escrita pelo punho do próprio eleitor, da opção que este pretende. O direito de voto é exercido em locais que garantam que qualquer eleitor lá poderá chegar com facilidade, tendo as condições necessárias a exercer esse direito num espaço sem estar sujeito aos olhares ou intromissões de terceiros. No caso das pessoas com deficiência visual, existe também há muito a garantia de que estas se possam fazer acompanhar por um outro eleitor de sua escolha. Isto porque, dadas as caraterísticas do próprio boletim de voto, estas pessoas estão impossibilitadas de assinalar com uma cruz, aposta pelo próprio punho no boletim de voto, a opção que pretendem – desde logo porque não conseguem saber nem qual o espaço apropriado para colocar a cruz, nem tão-pouco qual destes espaços corresponde à opção por elas pretendida.
A alteração agora introduzida em diversas leis eleitorais dá mais um passo no sentido da consagração das garantias a que Portugal se vinculou internacionalmente, ao permitir que as pessoas com deficiência visual possam exercer autonomamente os seus direitos de voto. Assim, nas eleições para a Assembleia da República e para Presidente da República, bem como nas eleições para o Parlamento Europeu (às quais se aplica o regime legalmente aplicável às eleições para o Parlamento Nacional), as pessoas com deficiência podem solicitar às mesas de votação que lhes disponibilizem uma matriz em Braille, a qual lhes será entregue sobreposta ao boletim de voto, para que estes possam proceder à leitura do boletim e assinalar com uma cruz, no recorte do quadrado da lista correspondente à sua opção de voto, correspondente à sua opção. Traduzindo a linguagem do legislador para uma forma mais simples, o eleitor receberá uma matriz, a qual lhe é entregue por cima de um boletim de voto igual ao que é disponibilizado aos demais votantes. A referida matriz tem espaços quadrados, que ficam por isso em cima dos locais destinados ao preenchimento por qualquer eleitor das cruzes, sendo que cada quadrado corresponde a uma das opções disponíveis para votação. O eleitor com deficiência visual só terá pois que assinalar uma cruz nesse quadrado, o que fará com uma esferográfica disponibilizada para o efeito como qualquer cidadão. A referida cruz ficará colocada no mesmo espaço que seria utilizado por qualquer outro cidadão. Posteriormente, será este boletim de voto que será depositado na urna, sendo devolvida a matriz à mesa eleitoral. Assim, na contagem dos votos, não haverá qualquer distinção entre o boletim de voto preenchido pelo eleitor com deficiência visual e qualquer outro boletim, o que é essencial para garantir que o voto é, efetivamente, secreto.
Analisando o regime legal agora criado, há algumas notas que queremos desde já deixar assinaladas. Por um lado, a de que, do texto da lei, não nos parece possível que um eleitor vote acompanhado utilizando matriz em Braille. Com efeito, a lei diz que a disponibilização da matriz se destina a que o eleitor exerça o seu voto sozinho, o que implica necessariamente que, se recorrer à matriz do voto em Braille, não poderá votar, como até aqui, acompanhado por eleitor da sua confiança. Correspondentemente, poderá continuar a votar acompanhado por eleitor da sua confiança, não parecendo que nesse caso possa recorrer à matriz em Braille. Por outro lado, o legislador estipulou que a matriz do voto em Braille deve ser em tudo idêntica à do boletim de voto propriamente dito. Obviamente que, pelo espaço que o Braille ocupa, não será possível reproduzir, por exemplo, a designação completa dos diversos partidos políticos ou movimentos cívicos que se candidatem a umas dadas eleições, até porque, como se disse, a matriz do voto em Braille é para ser entregue sobreposta a um boletim de voto comum. Restará saber se, para manter a identidade com o boletim impresso, na referida matriz se irá optar pela reprodução das siglas (mais idêntica ao boletim de voto comum) ou por um conjunto de números, acompanhados de uma legenda, correspondendo cada número a uma opção de entre as disponíveis para votação – o que implicaria a disponibilização, para além da matriz, de uma legenda que explicitasse a que opção corresponde cada número (sistema utilizado, por exemplo, nas matrizes de voto disponibilizadas em Espanha e na Alemanha).
Subsistem ainda alguns aspetos onde a lei será, porventura, pouco clara. De entre eles, salientamos o exercício do direito de voto antecipado em mobilidade, agora consagrado, e que permite a qualquer eleitor votar antecipadamente numa mesa situada num ponto distinto do território nacional. É que o requerimento para o exercício do direito de voto nessas condições não parece prever a possibilidade de ser solicitado, à Administração Eleitoral, a disponibilização de matriz de voto em Braille. Todavia, e uma vez que o referido direito se exerce perante mesas eleitorais, nada obstaria a que o eleitor solicitasse à referida mesa a disponibilização da matriz no ato da votação propriamente dito. Idênticas preocupações são válidas para o exercício de voto antecipado por quem esteja privado da liberdade ou internado em estabelecimento hospitalar, sendo que, todavia, nestes casos a lei não prevê a disponibilização da matriz ao Presidente da Câmara Municipal, ou a quem o substitua, e uma vez mais não prevê também a possibilidade de o próprio eleitor privado da liberdade ou internado poder requerer a referida matriz. Diga-se de resto que não somos, por princípio, favoráveis a que o eleitor tenha que requerer antecipadamente a referida matriz, pois esta opção por si só é suscetível de permitir comprometer a anonimidade do voto.
Voltando aos compromissos que o Estado português assumiu no quadro da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, resta ainda uma última nota para o facto de, não raras vezes, as instalações onde se exerce o direito de voto não serem plenamente acessíveis. Com efeito, o Decreto-Lei n.º 163/2006 estipula que os edifícios ou locais abertos ao público – e é nestes que podem funcionar as assembleias de voto -, preencham um conjunto de requisitos que possibilite a sua utilização por pessoa com ou sem deficiência, qualquer que seja a limitação que origina essa deficiência. Independentemente da bondade ou atualidade dos requisitos técnicos fixados nessa lei, a verdade é que os mesmos não são sempre cumpridos, e raramente se dá visibilidade a algo que nos parece crucial para que as pessoas com deficiência visual possam exercer os seus direitos em condições de igualdade. Falamos da sinalética, nestes casos da sinalética que permita à pessoa cega ou com baixa visão saber, de forma autónoma, onde se situa dentro dos edifícios a mesa de voto correspondente ao seu número de eleitor. De igual forma, dentro do próprio local de voto, haveria que indicar de forma percetível em que local pode o direito ser exercido em condições de confidencialidade, assinalando designadamente o percurso desde a mesa até à cabina de voto, e da mesa até à saída do local concretamente definido. Ressalvamos ainda que a Convenção deixa no ar a possibilidade do recurso a novas tecnologias para o apoio ao exercício, em condições de igualdade, do voto e de outros direitos políticos. Se parece longe de muita controvérsia que o designado voto eletrónico poderia permitir aqui uma maior inclusão, como de resto já sucede noutros países, a verdade é que o recurso a novas tecnologias só para pessoas com deficiência, qualquer que ela fosse, introduziria também aqui um fator discriminatório, suscetível de comprometer o exercício desses direitos em verdadeiras condições de liberdade e igualdade, designadamente garantindo a confidencialidade e secretude que são essenciais ao exercício destes direitos políticos. Enquanto este sistema não for implementado para uso obrigatório por todos os cidadãos, não se pode defender o seu uso como obrigatório para as pessoas com deficiência, naturalmente. Todavia, será desejável que, na conceção das diversas experiências que vão sendo implementadas ao longo dos anos – e em 2019 parece ir ser implementada uma nova experiência nesse sentido – os requisitos relativos às pessoas com deficiência sejam adequadamente tidos em conta desde o início, de forma a permitir um exercício do direito de voto não segregado nem diferenciado. Estas preocupações parecem, contudo, estar a ser devidamente tidas em conta, mas é algo que nos compete a todos continuar a monitorizar.
O que deixámos dito não retira, todavia, nada ao caráter inovador e potenciador da autonomia que a nova medida encerra em si mesma. Numa altura em que é comum queixarmo-nos da falta de empenho de todos os cidadãos na definição do rumo político a dar à comunidade a que pertencem, serão sempre de saudar iniciativas que alargam as possibilidades de participação, em condições de igualdade, das pessoas com deficiência nos processos eleitorais dos seus países, na medida em que alargam o potencial de participação de todos os cidadãos na definição das opções políticas que também os irão afetar, enquanto cidadãos. Este é, com efeito, mais um passo no caminho de uma sociedade inclusiva. Não é o último passo a dar, não é por isso definitivo, mas o caminho constrói-se passo a passo e, a partir de agora, também com maiores possibilidades de envolvimento das pessoas com deficiência visual. E isso é, efetivamente, merecedor de destaque pela positiva. É, também e sem grandes dúvidas, um convite a que as pessoas com deficiência visual se façam presentes nas três eleições agendadas para 2019 em Portugal.