CULTURA
Por Fátima Alves, Locus Acesso
Ponto de partida com quem e para quem?
Aprendemos ao longo de cerca de 20 anos, o quanto as pessoas com deficiência foram e são essenciais para o caminho que escolhemos. Trabalhar nas questões de acessibilidade cultural, tendo como ponto de partida, as pessoas com deficiência, foi e continua a ser, simplesmente, a melhor resolução! Jamais teria sido possível, compreendermos a dimensão do conceito de acessibilidade, e de termos a determinação e a necessidade de caminhar, passo a passo, no sentido de fazer, escolher e procurar as melhores soluções para a autonomia e enriquecimento de todos. Não temos qualquer dúvida, a melhoria da acessibilidade acrescenta, engrandece e cria uma dinâmica nos espaços de cultura cuja fruição e proveito são para todos nós! E por isso, esta perspectiva positiva apoderou-se naturalmente do nosso ser e da nossa missão junto das instituições culturais. São muitas as pessoas que gostaríamos de referenciar mas o espaço não é suficiente, algumas pessoas que já partiram e outras que nos acompanham directa ou indirectamente, José Manuel Fernandes, Hoëlle Corvest, Guy Boucheveau, Patrick Segal, Joana Rosa, Emmanuelle Laborit, Renato Nunes, Lourenço Pedroso, Carlos Mourão Pereira, Regina Cohen, Helder Duarte…Cada palavra, gesto, exemplo, e partilha estão presentes no nosso quotidiano. Por isso, chegar e entrar num espaço, ser recebido com dignidade, onde a informação e a programação tem em conta a minha condição de pessoa, independentemente de ser cego, ter baixa visão, ser surdo, ter uma deficiência cognitiva, estar em cadeira de rodas ou de muletas…sozinho ou acompanhado, de forma autónoma ou com ajuda, poder escolher uma exposição, uma peça de teatro, um espectáculo, uma actividade ou um evento e participar activamente se assim o desejar, eis as questões-chave!
São muitos os manuais de acessibilidade existentes nos diversos países (Inglaterra, França, Portugal, Bélgica, Espanha, Itália, Suíça, Suécia, Finlândia, Brasil, EUA,…), investigações, livros que abordam as pessoas com deficiência e as publicações acessíveis sobre diversas áreas do conhecimento. De facto, temos toda a informação necessária para criar espaços de cultura e de turismo acessíveis, TODA! Sabemos que a melhoria da acessibilidade traz um valor acrescentado a todos os níveis, não apenas para as pessoas com deficiência mas para TODOS. Basta olhar à nossa volta, as cidades estão a ficar mais acessíveis e consequentemente mais confortáveis; no caso da cidade de Lisboa, vemos diariamente mais pessoas com mobilidade reduzida na rua, e não são só os moradores, são também os turistas, e de todas as idades.
Quando nos colocamos no lugar do outro, a experiência é marcante, permite-nos sentir as barreiras que uma pessoa em cadeira de rodas, uma pessoa cega ou com baixa visão… tem no seu dia-a-dia; até os mais pequenos detalhes podem fazer a diferença e na maior parte das vezes, passam-nos muitas vezes ao lado. Por isso, experiênciar um percurso do princípio ao fim faz todo o sentido e que deve ser repetido noutras ocasiões, pois temos tendência para esquecer rapidamente e contribuir para que as barreiras continuem e/ou se repitam!
E se no tempo de lazer quiser visitar uma exposição, não basta apanhar o comboio, autocarro, metro ou ir a pé ou de rodas, é necessário verificar a acessibilidade de cada passo, ora vejamos:
1) verificar se todo o trajecto pode ser feito nos transportes públicos e funcionamento dos elevadores, plataformas do autocarro, se se pode estacionar perto, a distância a pé ou roda, com apoio ou sem;
2) se a entrada tem desníveis ou não;
3) existência de casa-de-banho;
4) salas expositivas, de actividade e eventos sem desníveis e com elevador;
5) conteúdo das exposições, actividades e eventos em diversos formatos;
6) suportes de informação e de comunicação em papel e digital acessíveis;
7) cafeteria, loja, auditório e jardim sem barreiras;
8) por último, mas não menos importante: uma equipa capaz receber adequadamente as pessoas com deficiência.
A decisão da pessoa, sozinha ou acompanhada, para visitar uma exposição contará com a maior parte dos pontos atrás indicados, essenciais para que seja uma boa experiência e não se torne, num local non grato! Por isso, os sites de vários espaços culturais costumam indicar o máximo de informações, com imagens/vídeos/mp4 se necessário, para que o potencial visitante saiba com o que contar.
De que forma organizamos/fazemos as visitas acessíveis da Locus Acesso? Somos apaixonados pelos espaços de cultura e de turismo, desejamos que sejam locais em que possamos estar, descobrir e compreender o que se encontra no seu interior/exterior; e tendo em conta que a nossa oferta destina-se sobretudo aos individuais cegos e com baixa visão, surdos, pessoas com mobilidade reduzida, pessoas com deficiência cognitiva e com perturbações na comunicação; e por isso, a questão da acessibilidade destes espaços é de grande relevância para nós e assim sendo, faz todo o sentido visitá-los e fazermos os possíveis para que tal aconteça com o nosso público de eleição:
Há menos de um ano começamos com as visitas acessíveis direccionada para as pessoas cegas e com baixa visão, e rapidamente, verificamos uma grande adesão! São várias as pessoas que nos dizem: “há anos que não ia a este espaço”, “não fazia ideia que se podia visitar e que se pudesse tocar”, “foi a primeira vez que visitei e adorei”, etc… Só nos resta continuar e procurar novos espaços de grande interesse, onde possamos em conjunto, se necessário, criar cada vez mais e melhor, uma maior frequência das pessoas cegas e com baixa visão. A verdade é que são ainda pouco frequentes as visitas orientadas para as pessoas cegas e com baixa visão; e para se fazer uma visita adequada é necessário alguma prática, não basta a leitura de uma manual ou de uma formação! Tem sido uma verdadeira experiência com os diferentes técnicos/educadores com quem temos conversados e partilhado experiências.
A visita conta com o máximo de seis pessoas cegas e com baixa visão e um acompanhante cada, pois queremos que todos possam ter tempo suficiente para as perguntas e o tocar. E porque o conteúdo da visita tem uma importância capital, quem melhor que o técnico/educador/guia do espaço, para nos fazer viver uma belíssima experiência, e temos tido visitas maravilhosas. Temos consciência que muitas pessoas podem não ter acompanhante e por isso, a nossa mensagem desde o princípio, foi que isso não é um problema, nós vamos ter com a pessoa ao transporte público mais próximo do espaço (50% das pessoas que se inscrevem nas visitas não têm acompanhante). Quando não há possibilidade de visita guiada/orientada por um técnico/educador, nós fazemos a visita.
Os cinco elementos que fazem parte de uma visita acessível:
1) Conteúdo (50%) - o técnico/educador/guia tem de ter um conhecimento sólido e fazer uma mediação aberta, flexível e explicativa daquilo que tem à frente;
2) Tocar (15%) - uma componente indispensável para se compreender e concretizar o conteúdo ouvido; basta imaginar o que seria para uma pessoa que vê, ir a uma visita de uma exposição onde as peças estariam todas tapadas e ouvir-se-ia apenas o discurso do técnico; dificilmente ficaríamos com uma percepção concreta e realista! Assim, com o recurso à exploração de maquetes, originais, réplicas, modelos e representações em 2D 1/2 tem sido possível tornar as visitas mais sustentáveis;
3) Descrição (15%) - em geral, o técnico/mediador/guia já faz alguma descrição nas visitas para o público que vê, ao explicar os elementos/detalhes de um quadro ou de uma escultura; quando se trata do público cego e com baixa visão, é necessário enriquecer o seu discurso com detalhes mais precisos sem ser demasiado exaustivo (quanto ao espaço e o que se encontra à volta, quanto às peças selecionadas, sendo que se deve recorrer o mais possível ao sentido do toque).
4) Diálogo (15%) - é uma ferramenta imprescindível através da qual podemos ajustar o discurso, a descrição e a interacção consoante a experiência de cada pessoa cega e com baixa visão; um ping-pong de perguntas ao longo da visita é bom sinal!
5) Outros (5%) - o cheiro, o som, o gosto, o corpo…são elementos complementares podem surgir e contribuir para enriquecer a experiência da visita.
Temos tentado medir a dose necessária para cada um dos elementos e a sua eficácia na compreensão da visita, mas sem grande precisão; o esquema acima é um mero exercício mas queremos muito investigar toda esta dinâmica com ajuda de investigadores de diversas áreas.
Mais recentemente temos organizados visitas acessíveis para surdos: para Surdos com Língua Gestual Portuguesa (LGP) e surdos com Leitura Labial (sem LGP). Pouco a pouco, contamos que seja também algo mais frequente.
As visitas com interpretação em LGP decorrem com a dupla técnico do espaço cultural e um intérprete de LGP, que traduz todo o discurso, além das perguntas/comentários ao longo da visita; contamos organizar no futuro visitas em LGP com um mediador surdo mas por enquanto ainda não foi possível.
Está nos nossos planos criar uma listagem de termos específicos de cada espaço cultural e a sua correspondência em LGP. É fundamental que saibamos a terminologia utilizada na arte e ciência e se esta tem correspondência gestual num só gesto, num conjunto de gesto que define a palavra ou através da dactilologia (gestos das letras que compõe a palavra). Para o efeito contaremos com o saber de várias instituições que trabalham estas questões.
Nem todas as pessoas surdas utilizam a Língua Gestual Portuguesa e são muitas as pessoas que väo perdendo a audição. Dificilmente uma pessoa nestas condições conseguirá acompanhar a visita habitual. Assim, estas visitas com Leitura Labial (termo inspirado nas visitas que já decorrem há mais de uma década em França, em dezenas de espaços culturais) tem de ter uma dinâmica adequada: ter um número reduzido de pessoas, um técnico que fale mais devagar, tenha uma boa articulação das palavras e cuja boca esteja bem visível, recorrendo a diversas imagens representativas e à escrita das palavras menos habituais, evitando os momentos de grande fluxo de visitantes. Os espaços culturais em França com maior experiência disponibilizam amplificadores de indução magnética para as pessoas com aparelho auditivo e microfone para o técnico/educador/guia. Esperamos poder desenvolver estas visitas num número maior de espaços.
Poderíamos continuar com a questão das exposições, documentos de comunicação acessíveis ou da importância da sensibilização/formação contínua dos técnicos/educadores/guias. Mas consideramos que o primeiro passo indispensável para o sucesso da melhoria da acessibilidade é criar uma maior frequência de visitas acessíveis. As visitas acessíveis organizadas até ao momento têm tido um custo zero ou reduzido para os espaços culturais.
Por decisão pessoal, a autora deste artigo não escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico.