Numa altura em que muita gente está, já esteve ou está a caminho de estar, no gozo das suas merecidas férias, trazemos à presente edição o tema do estacionamento na sua relação com as pessoas com deficiência. Entre as pessoas com deficiência visual, habitualmente o tema é tratado do ponto de vista do estacionamento abusivo por parte dos condutores, em cima de passeios, ou em frente a passadeiras, por exemplo. Do ponto de vista das pessoas com deficiência motora é mais comum ouvirmos o tema debatido do prisma da falta de lugares próprios para estacionar, referindo-se não só à falta de lugares com caraterísticas específicas que permitam o embarque e desembarque de equipamentos de apoio à mobilidade em condições de comodidade e segurança, mas também à falta dos lugares identificados para estacionamento de pessoas com deficiência propriamente ditos, ou à sua ocupação abusiva por condutores sem direito a estacionar nos referidos lugares. Um breve questionário de rua, realizado aleatoriamente em qualquer cidade, mostraria também sem grande dificuldade que a maioria das pessoas perceciona o problema do estacionamento para pessoas com deficiência deste segundo ponto de vista, mas que, contudo, identificaria o primeiro – o do estacionamento abusivo fora dos lugares assinalados para tal – como mais recorrente. Este breve introito que mistura senso comum com uma pitada de análise sociológica tem, contudo, um fim específico: perceber o sentido que tem norteado a legislação relativa à relação entre o estacionamento e os direitos das pessoas com deficiência.

O tema não é novo no panorama legislativo português, e pelo menos desde os anos 80 que existem tanto lugares próprios para o estacionamento de pessoas com deficiência como cartões identificativos apropriados, a afixar nos veículos utilizados por estas pessoas, que lhes permitem estacionar nos lugares para tanto assinalados. No entanto, o diploma central nesta matéria é, presentemente, o Decreto-Lei n.º 307/2003, de 12 de outubro, entretanto alterado em 2011 no que toca a regras sobre o pedido e validade do dístico que permite o estacionamento e, mais recentemente, pela Lei n.º 48/2017, de 7 de julho, que entrou em vigor no passado dia 6 de agosto, no que toca à previsão da existência de lugares destinados ao estacionamento de pessoas com deficiência. O referido Decreto-Lei foi emitido na sequência de uma recomendação de 1998 do Conselho Europeu, que recomendava uma uniformização de modelo no que diz respeito aos dísticos identificadores a afixar nas viaturas que transportavam pessoas com mobilidade reduzida para que estas, independentemente do Estado-membro de onde viessem, pudessem estacionar nos lugares apropriados em qualquer país da União. No entanto, ao implementar esta recomendação no direito nacional, o legislador utilizou um conceito mais reduzido de pessoas com mobilidade reduzida. Assim, nos termos do Decreto-Lei n.º 307/2003 o cartão de estacionamento só pode ser utilizado por pessoas com deficiência motora ou com multideficiência profunda, sendo que a pessoa com multideficiência profunda tem que ter sempre deficiência física ou motora e, cumulativamente, outra deficiência – sensorial, intelectual ou visual – de caráter permanente. Podem também usufruir os Deficientes das Forças Armadas, desde que possuam uma incapacidade motora igual ou superior a 60%.

A primeira consequência prática a retirar deste enquadramento restritivo é que as pessoas com deficiência visual, com qualquer grau de incapacidade, não têm direito a este cartão, a não ser que tenham também uma deficiência física ou motora. Refira-se, a este respeito, que a deficiência visual não é nem pode ser considerada uma deficiência física, porque a função da pessoa que apresenta alguma restrição é uma função sensorial, dado dizer respeito a um sentido – o sentido da visão -, e não a qualquer função física.

As diversas delegações regionais do Instituto da Mobilidade e dos Transportes são competentes para emitir o cartão de estacionamento, podendo ser pedido em qualquer delegação do IMT ou no seu sítio da Internet, em www.imt-ip.pt, na área de serviços online, em Pedidos, na seção Outros. O cartão é, em princípio, válido por dez anos, a não ser quando os atestados de incapacidade multiusos têm um prazo de validade diferente, caso em que é este prazo que prevalece. Só pode ser usado em veículos que, efetivamente, transportem naquele momento pessoas com deficiência motora ou com multideficiência profunda. Por fim, as entidades públicas, mesmo que em regime de parceria público-privada – como alguns hospitais, por exemplo – que tenham lugares de estacionamento destinados ao uso do público, mesmo que esse estacionamento esteja concessionado, devem assegurar lugares para estacionamento adequados a pessoas com deficiência. Caso não disponham de tais lugares, devem assegurar a sua existência na via pública. Os referidos lugares devem cumprir as especificações melhor descritas no Decreto-Lei n.º 163/2006, de 8 de agosto.

O regime legal em vigor não está livre de censuras, por restringir o uso do cartão apenas a quem tem deficiência motora. Aliás, sobre isso já se pronunciou, em 2015, o Provedor de Justiça, na Recomendação 1/B/2015. No citado documento podemos ver recomendado ao legislador que alargue o benefício deste cartão às pessoas com deficiência visual, com 95% ou mais de incapacidade. A razão de ser prende-se com a necessária homogeneização de regime entre este diploma e o Código do Imposto sobre Veículos, aprovado pela Lei n.º 22-A/2007, entretanto já alterado várias vezes. Na realidade, pode não fazer sentido que uma pessoa com deficiência possa adquirir um automóvel com benefícios fiscais e utilizá-lo, em seu próprio proveito, sem que depois possa utilizar os referidos lugares de estacionamento. Os céticos desta visão dirão, especificamente no caso das pessoas com deficiência visual, que elas não estão, efetivamente, tão limitadas na sua mobilidade física como as pessoas com deficiência motora, o que nos parece uma verdade inquestionável, pelo que sempre poderiam percorrer a pé o percurso a partir de um lugar comummente disponível até ao serviço onde desejam ir, até porque não conduzem autonomamente e, portanto, presume-se que também não irão a pé autonomamente até ao referido local de destino. Só que as pessoas com deficiência visual recorrem necessariamente aos préstimos de alguém para lhes conduzir a viatura, e esse recurso pode ter, e não raras vezes tem, custos – sejam custos económicos, sejam custos decorrentes da maior disponibilidade de tempo que pode ser exigida a quem conduza as referidas viaturas. Por outro lado, muitos países da União Europeia não restringem este benefício a pessoas com deficiência motora, sendo que o conceito utilizado pela recomendação do Conselho Europeu de 1998, a que acima aludimos, é o de “pessoas com mobilidade reduzida”. Este conceito também abrange, efetivamente, as pessoas com deficiência visual. Ora como os cartões emitidos por outros países europeus são válidos em Portugal, isto levaria na prática a que uma pessoa com deficiência visual, legitimada pelo direito de outro país a utilizar cartão de estacionamento para pessoas com deficiência, pudesse estacionar nestes lugares em Portugal, ao mesmo tempo que uma pessoa com deficiência visual portuguesa não o poderia fazer. Estaria, pois, também por esta via ferido de inconstitucionalidade o referido Decreto-Lei.

Felizmente, e já próximo da data em que este artigo foi submetido para publicação, o Governo aprovou uma alteração a este diploma legislativo, seguindo a recomendação do Provedor de Justiça de que acima demos conta, pelo que, dentro de muito pouco tempo, já será possível às pessoas com deficiência visual com grau de incapacidade igual ou superior a 95%, bem como a várias outras pessoas com deficiência, beneficiar do referido cartão, que poderão pedir nos locais e pelas formas que acima identificámos. No entanto, o referido Decreto-Lei não foi ainda publicado, pelo que não se conhece a partir de quando entrará esta medida em vigor.

Por fim, algumas observações sobre a problemática do estacionamento abusivo. Recentemente, pela Lei n.º 47/2017, o legislador introduziu uma alteração ao Código da Estrada, punindo como contraordenação grave a paragem em local reservado ao estacionamento de titulares do cartão de estacionamento para pessoas com deficiência (atualmente a al. q) do n.º 1 do art.º 145.º). Já antes, era também punido como contraordenação grave a paragem ou estacionamento sobre as passadeiras para peões (al. o) do mesmo número do mesmo artigo). Esses comportamentos já antes eram punidos através do bloqueio e remoção do veículo, pois o legislador entendeu, como consta nos artigos 164.º e 165.º do Código da Estrada, que se trata de estacionamento que constitui evidente perigo ou grave perturbação para o trânsito. No entanto, o artigo 165.º do Código da Estrada, no seu n.º 2, continua a considerar motivador do bloqueio e remoção do veículo, também, o estacionamento nas paragens de transportes coletivos ou em cima dos passeios. Os referidos comportamentos não são, contudo, suscetíveis de serem autonomamente punidos com qualquer contraordenação, ao contrário do que acontece agora com o estacionamento em lugares destinados a pessoas com deficiência quando feito por quem não utilize o referido dístico, ou do que já acontecia com quem estacionasse em cima das passagens para peões devidamente assinaladas. Esta é uma situação que, uma vez mais, nos pareceria merecer igualmente tutela na letra da lei.

Se as férias são aquela altura do ano em que estacionamos o trabalho por algum tempo, aproveitemos esse descanso para também estacionar os nossos veículos nos termos da lei. Mas não estacionemos as preocupações nesta matéria apenas ao conteúdo literal dos textos legais, pois o direito estradal não se aplica só na estrada nem só aos automobilistas, sendo também essencial que os peões conheçam, e atuem, os seus direitos, nos limites em que eles estão consagrados. É, igualmente, essencial que todos nós aproveitemos esta oportunidade de estacionarmos um pouco a nossa vida rotineira para pensar no sentido dos direitos que existem, com vista a percebermos se eles acautelam as necessidades de todos numa sociedade que se diz inclusiva e, caso achemos que tal não sucede, podermos pensar na melhor forma de os acautelar, e essa será a forma que melhor consiga proteger todos os interesses diferentes em confronto.